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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Tratado sobre o sono



No livro “Gula – Clube dos Anjos”, Luís Fernando Veríssimo escreve que a fome é o único desejo reincidente. Eu discordo. Pra mim, o único desejo reincidente é o sono. Ele me acompanha e me devora em horas impróprias.
Enquanto uma grande parte da humanidade tenta desesperadamente vencer o sono, outra parte tenta conquistá-lo. Ninguém nunca está satisfeito com a quantidade de horas que dorme. Isso porque o sono tem vontade própria. É ele quem manda na relação. A última decisão é sempre dele, segundos antes de nos dominar.
Eu sou da turma dos que café é líquido como qualquer outro. Consumo xícaras e xícaras, até meu estômago não poder mais. E serve para muitas coisas: alivia as tensões, inspira a escrita, garante uma pausa em meio a manhã... Só não cura o sono.
Tentei também a receita dos chás. Gosto de beber em copos, não em xícaras. Não sei o porquê. Perco a conta de quantos copos bebo no horário do intervalo, enquanto converso com as pessoas, escuto música, escrevo, estudo, e tento não cochilar (e geralmente, tudo isso ao mesmo tempo). Mas, também não muda nada em relação ao sono.
Sempre fui fraca para isso. Quando era criança, pedia para meu pai contar histórias pra mim no meio da tarde, quando estava bem acordada, pois, se esperasse até a noite, eu apagaria sem saber o que vem depois do “era uma vez”. Até história de bicho-papão me colocava na cama, fácil, fácil.
Lembro da vez que precisei arrancar os dentes de siso. O dentista mal havia começado a injetar a anestesia e eu já não sentia nada. Lembro dele feliz pelo lucro que estava dando: duas extrações, quase sem gastar com anestesia. Na verdade, a cadeira do dentista me dá sono, e aquele barulhinho das ferramentas é como música.
Não tenho problemas para dormir, mas também não sou chata para acordar. Horário é horário, independentemente das horas de repouso que tive. Nem acordo de mal humor, nem nada. Durante o dia eu consigo controlar até que bem essa situação, mas basta me recostar em algum lugar que não tem volta. Lembro das pessoas reclamando pelas festinhas que o pessoal do fundo do ônibus fazia às quintas-feiras, na volta da faculdade. Muitas vezes eu sentava próximo ao fundo, mas não lembro de ouvir nada. Quintas-feiras é um dia especial para o sono me vencer.
Ele é forte, resistente, não aceita ouvir não. Vejo o sono materializado, me segurando e não deixando eu parar no ponto certo de ônibus, nem dirigir à noite... Mas, apesar disso, não o vejo como sombrio, amedrontador. Jamais. Sono pra mim sempre foi sinônimo de sonhos, e os meus sempre são bem coloridos e, às vezes, reais demais. Deve ser por isso: muitas vezes acordo cansada de tanto sonhar.
Já me acostumei também a resolver problemas durante o sono. Tinha uma época que estava determinada a achar a solução para a dívida externa. Acho que tinha uns nove anos nessa época, e sempre ouvia os grandes falando com preocupação sobre isso, antes de me mandarem para a cama. E eu ia... Começava a pensar e adormecia tentando achar uma saída, nem que fosse crescer logo para poder fazer parte das discussões. Mas, quando cresci, deixar de me preocupar com os números e índices e comecei a me preocupar mais com o efeito deles na vida das pessoas.
Embora costume visualizar o texto pronto ainda quando ele está saindo da boca dos entrevistados, tenho dificuldade de escrever a primeira frase e isso faz com que trave todo o resto. Minha salvação é dormir. Meu cérebro está preparado para resolver essas coisas “sem a minha presença”. Geralmente umas horas de repouso me presenteiam com um lide prontinho para ser transformado em texto completo.
Pra mim, todo sono é uma nova chance de começo. E tenho vontade de recomeçar sempre: diferente e com mais intensidade. Nem que para isso precise me deixar vencer algumas vezes...

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Dissimulações do cor-de-rosa



Sai cedo da aula ontem. Estava cansada e com a falta de motivação que tem sido corriqueira nas terças à noite. Sai da sala e fui caminhar. Pretendia ir até a biblioteca, abrir um livro qualquer e ler meia dúzia de páginas que não dissessem nada e que, de repente, poderiam mostrar algo surpreendente. Mas não precisei chegar até lá para encontrar o que eu buscava.
No Redondo, espécie de área comum a todos os cursos, havia uma feirinha de artesanatos e outras espécies de bugigangas. Nada de novo. Já passei por essas feirinhas umas trezentas vezes e, na Unisinos então, desde o início do curso. Sempre que passo por esse tipo de comércio, não consigo evitar dar uma olhadinha de lista de produtos expostos. Gosto de ver a variedade e ouvir a lábia que os vendedores aplicam para atrair os que por ai passam. Mas, não foi isso que me chamou atenção quando sai da sala.
A feirinha estava lá como sempre. E, logo que olhei, vi uma menina, com uns cinco, seis anos, toda encantada, fitando uma boneca que estava em uma das estandes. Com o olhar fixo, sem perder o foco uma única vez, ela seguiu em direção a boneca, em sentido diagonal, cortando o caminho por entre as pessoas que circulavam. O menino que a acompanhava, uns três anos mais velho, e presumo ser seu irmão, não demonstrava muita paciência para estar ali, olhando bonecas. Mas, nem mesmo o chamado insistente para que saísse dai e voltasse ao caminho por onde vieram fez a menina desgrudar da estande.
Olhei para essa cena e ao vê-la passando por mim em milésimos de segundos pensei que tinha encontrado a resposta que procurava a noite toda. Um início para esse texto que me tirou da sala, logo cedo, e me levou de volta para escrevê-lo.
Fiquei pensando naquela menina. Não sei o que estava fazendo naquele universo adulto, da mesma forma que não sei o que muitos de nós estamos fazendo lá. Pensei o quanto deve ter sido fascinante para ela descobrir que na Universidade há bonecas a escolher.
E, não é só para ela que o faz-de-conta é real. A maioria de nós está ai mais na farsa do que de resto. Temos uma vida além das duas horas e pouco que passamos na universidade a cada noite, embora cada vez menos temos tido tempo de vivê-la. Temos carreiras que exigem nossas energias para além das oito horas diárias que nos pagam. E, por tudo isso, cada vez mais, estamos na universidade para faz-de-conta.
A maioria de nós improvisa em todas as tarefas que nos são exigidas. “Damos um jeito” de cumpri-las nos nossos horários de almoço; vamos jogando-as para alguma hora da madrugada do final de semana, que é o único tempo que temos. Fazemos, mas, “daquele jeito” que faz lembrar o quanto deixamos de exercitar a nossa chance de sermos brilhantes.
Não, na vida real não faremos as coisas como nos trabalhos da faculdade. Sempre tenho a sensação de que o que é feito na aula não passa de uma simulação, onde fingimos que fazemos algo. Todas as tentativas de fazer algo próximo a realidade não passam de encenação. E isso não significa que sejamos maus profissionais na verdade (talvez apenas profissionais cansados).
A faculdade é um lugar onde conhecemos pessoas brilhantes que tiram oito. Gente que descobrimos ser de confiança na hora de dividir responsabilidades. Pessoas fascinantes que, nos momentos que não são de trabalho, ou seja, fora do horário de simulação, mostram o quanto se preocupam com o próximo, independentemente do lugar onde estejam. Gente que levaremos para toda a vida, mesmo que um dia nos formemos e seguimos por caminhos diferentes. E também, gente que dissimuladamente, vai ficar no faz-de-conta a vida inteira.
Profissionalmente, a maioria é bem diferente na universidade do que é na vida real. Ao contrário do que cobram no curso, no trabalho me esqueço, na maioria das vezes, de colocar barra no final das frases. Isso, porque me preocupo muito mais com o conteúdo que produzo do que com as malditas barras indicando quando a informação termina. A faculdade me obriga a moldar o conteúdo que não me instiga a produzir.
 Pessoalmente, as pessoas são como são, embora o sistema de avaliação não reconheça isso. Egocentrismo são premiados. Dissimulações recompensadas: o melhor é o que mente mais. E, talentos são desencorajados. Os melhores de verdade, da vida de verdade, são colocados na lista dos que não importa se estão na sala ou não, no plano das medianidades.
Sinto, e, lamento por isso, que muitas vezes precisei sair da sala para aprender sobre a importância da nossa profissão, uma vez que na aula, somos levados a acreditar que não há razão para estar ali. Mas, uma simples volta, prova exatamente o contrário. Sinto, e não lamento, que as principais coisas que aprendi sobre jornalismo nos últimos semestres, tenhas sido descobertas feitas depois da aula, em alguma roda de amigos e colegas que não estavam sendo obrigados a dissimular.
Ontem, quando voltava para a sala, a maioria dos meus colegas estavam já saindo. Encontrei com um no elevador que me perguntou se estava melhor. E, eu fui obrigada a responder: “Não. Estou bem pior e pronta pra escrever”. E foi assim, até essa última linha.