Sai cedo da aula ontem. Estava cansada e com a falta de
motivação que tem sido corriqueira nas terças à noite. Sai da sala e fui
caminhar. Pretendia ir até a biblioteca, abrir um livro qualquer e ler meia
dúzia de páginas que não dissessem nada e que, de repente, poderiam mostrar
algo surpreendente. Mas não precisei chegar até lá para encontrar o que eu
buscava.
No Redondo, espécie de área comum a todos os cursos, havia
uma feirinha de artesanatos e outras espécies de bugigangas. Nada de novo. Já
passei por essas feirinhas umas trezentas vezes e, na Unisinos então, desde o
início do curso. Sempre que passo por esse tipo de comércio, não consigo evitar
dar uma olhadinha de lista de produtos expostos. Gosto de ver a variedade e
ouvir a lábia que os vendedores aplicam para atrair os que por ai passam. Mas,
não foi isso que me chamou atenção quando sai da sala.
A feirinha estava lá como sempre. E, logo que olhei, vi uma
menina, com uns cinco, seis anos, toda encantada, fitando uma boneca que estava
em uma das estandes. Com o olhar fixo, sem perder o foco uma única vez, ela
seguiu em direção a boneca, em sentido diagonal, cortando o caminho por entre
as pessoas que circulavam. O menino que a acompanhava, uns três anos mais
velho, e presumo ser seu irmão, não demonstrava muita paciência para estar ali,
olhando bonecas. Mas, nem mesmo o chamado insistente para que saísse dai e
voltasse ao caminho por onde vieram fez a menina desgrudar da estande.
Olhei para essa cena e ao vê-la passando por mim em
milésimos de segundos pensei que tinha encontrado a resposta que procurava a
noite toda. Um início para esse texto que me tirou da sala, logo cedo, e me
levou de volta para escrevê-lo.
Fiquei pensando naquela menina. Não sei o que estava fazendo
naquele universo adulto, da mesma forma que não sei o que muitos de nós estamos
fazendo lá. Pensei o quanto deve ter sido fascinante para ela descobrir que na
Universidade há bonecas a escolher.
E, não é só para ela que o faz-de-conta é real. A maioria de
nós está ai mais na farsa do que de resto. Temos uma vida além das duas horas e
pouco que passamos na universidade a cada noite, embora cada vez menos temos
tido tempo de vivê-la. Temos carreiras que exigem nossas energias para além das
oito horas diárias que nos pagam. E, por tudo isso, cada vez mais, estamos na
universidade para faz-de-conta.
A maioria de nós improvisa em todas as tarefas que nos são
exigidas. “Damos um jeito” de cumpri-las nos nossos horários de almoço; vamos
jogando-as para alguma hora da madrugada do final de semana, que é o único
tempo que temos. Fazemos, mas, “daquele jeito” que faz lembrar o quanto
deixamos de exercitar a nossa chance de sermos brilhantes.
Não, na vida real não faremos as coisas como nos trabalhos
da faculdade. Sempre tenho a sensação de que o que é feito na aula não passa de
uma simulação, onde fingimos que fazemos algo. Todas as tentativas de fazer
algo próximo a realidade não passam de encenação. E isso não significa que
sejamos maus profissionais na verdade (talvez apenas profissionais cansados).
A faculdade é um lugar onde conhecemos pessoas brilhantes que
tiram oito. Gente que descobrimos ser de confiança na hora de dividir
responsabilidades. Pessoas fascinantes que, nos momentos que não são de
trabalho, ou seja, fora do horário de simulação, mostram o quanto se preocupam
com o próximo, independentemente do lugar onde estejam. Gente que levaremos
para toda a vida, mesmo que um dia nos formemos e seguimos por caminhos
diferentes. E também, gente que dissimuladamente, vai ficar no faz-de-conta a
vida inteira.
Profissionalmente, a maioria é bem diferente na universidade
do que é na vida real. Ao contrário do que cobram no curso, no trabalho me
esqueço, na maioria das vezes, de colocar barra no final das frases. Isso,
porque me preocupo muito mais com o conteúdo que produzo do que com as malditas
barras indicando quando a informação termina. A faculdade me obriga a moldar o
conteúdo que não me instiga a produzir.
Pessoalmente, as
pessoas são como são, embora o sistema de avaliação não reconheça isso. Egocentrismo
são premiados. Dissimulações recompensadas: o melhor é o que mente mais. E,
talentos são desencorajados. Os melhores de verdade, da vida de verdade, são
colocados na lista dos que não importa se estão na sala ou não, no plano das
medianidades.
Sinto, e, lamento por isso, que muitas vezes precisei sair
da sala para aprender sobre a importância da nossa profissão, uma vez que na
aula, somos levados a acreditar que não há razão para estar ali. Mas, uma simples
volta, prova exatamente o contrário. Sinto, e não lamento, que as principais
coisas que aprendi sobre jornalismo nos últimos semestres, tenhas sido
descobertas feitas depois da aula, em alguma roda de amigos e colegas que não
estavam sendo obrigados a dissimular.
Ontem, quando voltava para a sala, a maioria dos meus
colegas estavam já saindo. Encontrei com um no elevador que me perguntou se
estava melhor. E, eu fui obrigada a responder: “Não. Estou bem pior e pronta
pra escrever”. E foi assim, até essa última linha.